quinta-feira, 30 de outubro de 2014








[Misantropia III]

Eu sei que somos atraídos para abismos - abismos da mente, abismos de mim, humanos abismos
mas porque corres tão rápido a seu encontro?
numa pressa masoquista dos cobardes de viver
não sei se a vida te assusta ou se apenas nasceste cansado para tentar
sentes tão profundamente tudo, atinges o cerne de tudo
mas nada entendes, nada entendemos, meu irmão és soturno
alimentas a tua paranoia de estimação, porque não tens mais nada
dizes que tudo é vão no final, tudo é paisagem e simulacros de sentidos
e tudo é dolorosamente material, o platónico ficou nos versos
a inocência desapareceu do mundo numa qualquer manhã lúcida
e se também o amor se extinguiu, não choremos
não choremos, não corramos para abismos
só porque os abismos não se movem, nem surpreendem,
porque abismo sou só eu mais eu, no meu seguro e sórdido casulo interno,
onde o tempo estagna mas envelheço e me esqueço
que um dia já amei e sou viva e humana e poeta
nunca mais vamos dizer que a felicidade não é o nosso estado natural
inebriados no tédio dos dias, na misantropia de génios passados
eu sei que nascemos do amor, ele acontece às vezes
com a frequência rara das tempestades, num instante em que o Universo pára
e se condensa num coração, condescendente com as dores quotidianas de nós mortais,
onde o ar entre dois amantes se torna sagrado e excedente e tudo o resto
se apaga, cúmplices na certeza que apenas o céu os olha fraternal e os grava além
do Tempo

ou talvez isto seja eu a fazer poesia, e o Universo gira sempre imutável e indiferente,
desesperadamente indiferente
a cada dor, a cada amor, a cada saudade, a cada chaga
e nós não somos mais que aquilo que inventamos
só para nos deixarmos partir,
corpos que se passeiam contendo almas que anseiam alcançar uma outra
numa precisa e transcendente frequência rara, aniquilando a solidão,
esmurrando os deuses, com uma divindade talhada de um mundo imperfeito
porque divino é o ar entre duas almas que se encontram e se curam mutuamente
mas não importa, meu irmão, não importa, se ao menos sentires tudo visceralmente
despedires-te da noite e parabenizares a vida por teres sido, por haver um chão e um céu para poderes correr e para poderes voar.

Ficaremos em tudo o que tocarmos e isso chegará.


Sem comentários:

Enviar um comentário

  [Serás humano até ao fim] caminhas tocando as paredes numa divisão obscura os caminhos múltiplos, as escolhas pressionadas por um tempo de...