domingo, 15 de março de 2015




"COMO BARCOS CONTRA A CORRENTE"


Mãe, desculpa, não quero ser como tu - Amava-lo e não o perdoaste. Amava-lo e foste embora. Dizes-me agora que o amor se constrói, como fizeste com o pai. Mas eu já tentei, deus sabe que tentei e digo-te: o amor não é nenhuma casa para se erguer, e se se erguer, esta será tão fria porque construída sob os alicerces falsos de um falso amor. Vai cair. E vão fingir que ainda têm uma casa nesses destroços. O amor não se constrói. O que se constrói é uma versão fraca, como um céu amarrotado numa cartolina. Uma vela em luto pelo sol. Um beijo mecânico e dias de sorrisos forçados, é essa a construção? Bem me pareceu - o amor acontece-nos, às vezes, e nunca de igual modo.
Mãe, também sei que de nada vale mergulhar no passado e pensar em todos os caminhos que poderias ter traçado, mas só te escrevo isto porque vejo o brilho da juventude nos teus olhos quando falas desse homem. Bem sei: eu podia nunca ter nascido. Somos frutos de acasos e de orgulhos, do reprimir de vontades - estou cá por não o teres perdoado, por teres ido a um baile qualquer onde conheceste um rapaz moreno que seria o meu pai, por teres, enfim, decidido que querias viver na vida e não perdida em ficções, como eu, como Gatsby.

Gatsby...  Somos sonhadores,

   eu sei o que sentias quando olhavas para a luz verde do outro lado da baía. Eu sei a tua ânsia quando perguntavas se havia possibilidade de o passado se repetir no presente. A tua capacidade de acreditar comove-me. Sou tua irmã, Gastby. Amo um fantasma que adornei nas horas da sua ausência. Só não corri o mundo como tu para voltar e fazer uma casa à frente da dele. Nem sei onde vive, Gatsby. Amo um fantasma. Se tu me visses a falar dele... acredito que irias chorar, nesse plano onde vivem as ficções grandiosas. Como eu chorei quando te li. Chorei tanto quando morreste porque ninguém chorou por ti. Mas eu chorei, Gatsby, és como eu - Somos "aparentados com uma dessas máquinas complexas, capazes de registar tremores de terra que se produzem a dez mil milhas de distância"; temos um "dom extraordinário para alimentar a esperança"; somos barcos levados de volta ao passado, Gastby, mesmo sabendo que esse mar nos rouba a vida. Pobre Gatsby... ela não valia metade daquilo que dizias, não merecia metade da tua sensibilidade, não merecia esses olhos marejados diante da baía, na esteira do seu rasto. Também me dirás que ele não me merece. Mas ambos sabemos que isso nada importa e no meu caso não tenho tanta certeza- ele matava aquilo que me matava por dentro. Ele. É um símbolo - portador inconsciente do dom do esquecimento do tempo e do espaço, portador da juventude, do riso e das visões de fulgurosos dias.
É um amor que me mata, mas ainda assim é amor.




MF




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