domingo, 19 de abril de 2015

Poema em torrente



I

Não poderias, decerto, deixar teu sagrado espaço
ser invadido por outras almas, alheias a tudo
o que em graça floresceu em ti,
cegos para as paisagens internas e sementes por nascer,
apenas ocos corpos à procura de calor, quando querias
viagens mútuas, pela essência que se escapa, voar,
à boleia das palavras que te chegassem, pronunciadas,
escritas, por aquele através do qual, a tua essência tomaria forma
mediante corajosas investidas, subtis investidas
pelos caminhos labirínticos da tua alma.
apenas a solidão te beijou, docemente,
como nenhum humano seria capaz
e os teus lábios queriam provar texturas sóbrias e plenas
respirar outros ares de outra terra sem peso
assim - o esquecimento perfeito,
o abafar dos pensamentos e da noção de lugar
querias uma altura, florescer num enlevo sem expressão
porque os meios termos são para os outros mortais.

Não poderias,decerto, dares-te, a ti que nem te tens,
achas que pertences somente à Poesia
e o teu lugar é na placidez de um dia em que ergues mais um verso
um verso para toda a gente, um verso para ninguém
achas que pertences somente à Solidão que te beijou
quando estavas só, e te fez de uma outra espécie humana,
sensível, sedenta pelas estrelas e
pelo que se oculta por detrás dos dias.
desbravas, na tua inércia, os tesouros deixados pelos que morreram
percorres, buscas, vives sinfonias e poesias de outrem
e o teu coração estremece ante cartas de amantes passados
ante as almas que eram solitárias a dois e se escreviam,
e se escrutinavam num amar não analítico,
num amar tão carnalmente espiritual,
doce amar tão espiritualmente carnal,
amantes que se tacteavam com palavras e cujas frágeis mãos teciam
volúpias divinas e semeavam fogo além de si
as suas cartas são hoje lidas por ti - tu que és jovem e desacreditas o mundo
tu, que queres tanto viver e ter uma história mais alta
seres sepultada na mesma urna, no mesmo pedaço
de terra sagrado dos teus heróis
não achas a tua alma digna? também tu queres criar,
com o teu sangue poemas
e arrancar da tristeza a sua beleza,
inventar, pois, algum tipo de eternidade.

Oh pudesses tu... galáxia já baça, alimentas-te do fulgor emprestado
por outros versos, é assim que finges renascer nas tuas sombrias horas
pudesses tu desnivelar (só um pouco) a altura da tua alma,
até aos que se ajoelham humildes, perante ti,
e na sua humildade já são tão grandes
pudesses tu - amar e criar de raíz;
não és assim tão vasta e impossível de atingir
há alguns que pressentem a riqueza em ti,
sem que te vejam por inteiro
já devias saber - às vezes são os poetas que fazem o amante,
que este não é puro, nem magno, misterioso encanto,
sagrado corpo, sagrada alma derramada nos mesmos tons que a tua
pudesses tu aniquilar ímpetos narcisistas,
desligar a paixão pela tragédia e viver,
assim como vivem as coisas simples - contentes sob o calor do sol
seres a poesia em si, pausares a escrita
ribombares por aí, esse teu sangue jovem, esses lábios maduros
esses olhos claros, nunca turvos, esse coração aberto e leve
deixares a tua pele morena gravar a lembrança de cada beijo quente,
(que a Solidão não te pode ter por inteiro)

Menina, és tão pequena e queres ser grande
trazes nas veias frias, vontades sensoriais desmesuradas,
tu, que pareces tão imóvel no teu corpo, tão ausente daqui
e na tua doce ingenuidade matas a vida, viciada na melancolia
crente no dogma da inatingibilidade desse teu cerne só teu
mergulhado noutros mundos, apaixonada pelos infinitos
não, não queres mais fazer o teu amante
amantes - agora deixa-los à tua porta. e choram, mas não te tocam
e nesse momento pensas que já não tens coração capaz de amar
achas (falsamente) os teus sentidos gastos
e numa tristeza mal sofrida e fria,
recolhes-te de novo a ti e aos teus livros.
Rainer e Anais e Miller, fazem-te chorar. Suspiras. Ainda és humana
só que de uma outra espécie.
onde se fazem almas como aquelas? roubarias uma delas.
à porta uma da outra, passariam bilhetes pelas brechas
amar-se-iam, assim, como se amam os poetas,
e uma vez as almas fundidas, os corpos quebrariam as portas,
e a eternidade seriam vocês.


MF






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