Vários dispersos (2019)
(Imorredouro (da Inocência )
não farei de ti um objeto
para minha vangloria porque és um ser independente e eu só te ajudo a levantar
e a andar. deixar-te ei desarrumar a cozinha e fazer bolos, serão maravilhosos. deixar-te-ei conduzir livremente. não farei dos meus medos os teus. não te
exibirei como filha, os teus talentos resguardarei. que te seja um pilar seguro
e sereno, madura e com um olhar de paz mesmo no meio das mais profanas guerras, porque
sim: há coisas sagradas. contar-te-ei. e quando tudo te falhar, o teu juízo – amor.
não penses muito. Sente-O. ele basta-te. ele compreende. ele abarca-te. ele
aceita-te. ele faz-te despir como mais nada. ele faz te voltar a ti quando te
perderes. na asa do riso tu de novo inteira e com coragem. com voz. com
atitude. eu vou mãe. porque quero. eu convido, porque quero. e o vazio é a
distância entre mim e o meu pai, essa lágrima sem referência. essa solidão.
negligências e carências empáticas. incomunicabilidade, severidade e estreiteza
de juízos. de novo a resposta - amor. e o amor vive nos seres sãos. as vezes
afastamo-nos da nossa casa. para criar uma nossa. uma nova. depois das
lágrimas. espero que não vejas demasiado. espero que vejas demasiado. mas
tenhas o leme do teu espírito. elevado. mergulhas mas o fôlego é enorme,
menina. o céu é reconstruído, quando o sangue não se faz amargo. daí estas palavras.
caminha. confia. acredita. em ti. e verás onde firmar.
*
sofremos na imaginação, possivelmente somos o
único animal a fazê-lo. sofremos por antecipação, sofremos o que ainda não
existe. uma possível separação, afastamento. uma possível doença, um futuro
incerto. imaginamos tragédias, possibilidades e inquietações. poderíamos também
simular felicidade? plantar boas visões e senti-las? ter prazer da imaginação
do mesmo modo que se sofre de imaginação. seria assombrosamente reconfortante,
conseguir achar essa chave, desbloquear esse poder. Talvez nos colocássemos
nesse estado de energia mais benévolo e potenciador, criador, desse mesmo
futuro que imaginámos. E chegaríamos até ele plenos como imaginámos. eu tenho
visões de uma criança nos meus braços com a sabedoria dos anos. esse finalmente
não fatal, esse finalmente como destino e certeza depois do turbilhão do
crescimento. essa tranquilidade do espírito, sentidos não saturados e ainda
abertos ao milagre de cada dia. dou-lhe a mão e sorrio, chapinha na água do
mar, o horizonte como uma espada beijada pelo sol. vejo o meu irmão com o seu
filho. numa sala, um evento familiar. crianças na sala. essa visão, deveria
bastar-me. deveria inspirar-me a persistir. com toda a força, toda a vida, que
essas imagens evocam. implantar a força, cunhar no sangue de todos os dias
essas visões tão simples, tão humanas, que justificam absolutamente toda a
morte. gerar uma geração mais nobre, que escolhe subir à superfície e respirar,
em vez de adormecer nas dunas profundas onde o sol já não chega. “Tudo se
ordena, tudo se justifica", ecoando como mantra no meu espírito.
Junho
suponho que ande a espera de surpresas à
espera de casas. à espera desse encontro com algo suficiente. cúpula onde o ar
possa circular. suponho que queira o poder de inverter o tempo sem esquecer a
experiência. essa superomnisciência e nada saberia afinal. como agora nesse
vago denso abstrato cérebro direito e no esquerdo a linguagem que não abandono.
suponho que quase tudo suporte menos não ter tempo e só ir dormir a casa. sem
esse espaço onde navegue ou simplesmente ouça vagamente (o silêncio?). se eu
pudesse voltar atrás não saberia ainda a estrada. digo que vejo sinais mas os
sinais são simplesmente os meus olhos que não esquecem aquilo que os apaixona e
então veem antes mesmo de mim, nesse olhar que não procura e se surpreende com
um título na prateleira - Franz Boas ali perdido e eu com nostalgia de outros
sonhos. sinto que fui lá para ter histórias para contar e nostalgia de viagens
nunca empreendidas. Boas numa cabana do Alasca, Malinowski e os Argonautas do Pacífico.
e se eu quiser estudar de novo pensarei que estarei a fugir do mundo perdida na
minha própria cabeça. apenas a fugir desses sacrifícios seculares que me
parecem apenas e só vazios. ainda posso ver asas em humanos varrendo ruas, sim,
mas não me vejo com asas numa rotina que me despe do tempo onde as ganho.
(sonhos) morremos pelos nossos sonhos ou a
ascensão nunca se deu. não sei porque pretextos, mas tenho medo de não ter
lugar no mundo se me perder demasiado tempo aqui onde estive e voei. quero ao
menos ser livre na minha cabeça trabalhando 10 horas por dia.
onde sinto perder o meu corpo nada apetece.
se a vitalidade adormece para a ação pragmática e concentrada, técnica. dormir
contigo…o tédio despoletava o desejo. o excesso de tempo fazia-me imaginar-te
mais vezes, e a imaginação é fogo.
provar a mim mesma que sou capaz de
sobreviver assim como todos vós. provar a vocês, talvez, mais que a mim, que
nada rejeito e que de tudo tive saudade. e respeito cada um que se levanta
antes do sol nascer e se deita antes de o ter sentido na pele.
MF
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