quinta-feira, 6 de novembro de 2014






[Da Sensibilidade e das almas altas]
~ rascunho]

Uns sentem, outros existem, a ideia não é nova. Uns sentem tanto a ponto de não quererem sentir, outros nada sentem e sofrem de não sentir. Sentir - É isso que nos eleva, é isso que nos separa e nos faz mais que carne, amontoado de átomos, regidos por instintos e necessidades fisiológicas; mais que seres finitos inebriados pelas quimeras do vulgar, sem saber sonhar, transeuntes passageiros como tudo o resto, corpos que se desintegram como tudo o resto. Sem história antes de si e sem história depois de si.

A sensibilidade é um conceito disperso, incompreendido, é um dom escondido num solitário, na mulher e no homem que se sentam sozinhos no meio das multidões, fechados dentro de si em mundos só deles, em devaneios divinos, impressionados por cada detalhe ignorado por todos. É um dom dos poetas, dos pintores, dos músicos, dos estranhos, dos "desajustados", dos calados, dos brandos, dos altos. Os sensíveis são uma espécie à parte, a mais rara de todas; raros são aqueles que sabem sentir e criar algo exterior a si, alcançar uma outra alma, alcançarem-se a si próprios após lutas incessantes e invisíveis;  sabem ser eternos mil vezes na vida - Eternos nos outros, eternos no ar, num pôr do sol, num mar que os abarca por completo até ao mais ínfimo recôndito do seu ser. Os sensíveis vagueiam, sentem tudo profundamente, cada beijo de estranhos é um beijo seu e cada beijo é a pauta de mil canções e a fonte de mil poemas sempre diferentes. Inventam histórias e vidas, pintam com a mente outro mundo do fundo da sua solidão. Cada momento é despido de tempo, cada cor é mais intensa.
Na mente, na memória, tornam o vulgar em algo invulgar. Farão poemas a cada amor, odes a cada tristeza, farão da solidão algo belo, da morte algo com sentido, da vida algo de valor. Inspiram-se em cada manhã. As nuvens flutuam baixas, e o sol brilha alto. O chão está molhado da chuva que caiu. E o ser sente-se vivo nesse ar tão cheio. A razão perde o seu poder, só há espaço para sentir. 

Há tanto para sentir. Nascemos humanos para o melhor e para o pior. Toda esta consciência, toda esta noção cega e ingénua da vida e da morte. Toda esta sensibilidade tão lata, tão excedente para uns e tão escassa para outros. 
O mar é nosso, o céu é nosso - de uma maneira que os outros não entendem, ocupados que estão a existir na poeira, na lassidão dos dias sempre iguais e das noites ébrias. Tudo o que sentirem será a superfície fugidia e incerta de um véu que oculta um espaço sideral de sensações e nichos, calmarias mentais, paraísos em que somos tudo além de sermos nós, num estado primitivo puro e tacitamente aceite como superior. Ser terra, ser céu, ser mar, e na juventude dos dias alcançar uma outra alma sensível, que caminha pelos mesmos trilhos que a nossa, no jogo subtil das palavras e nos profundos olhares que às vezes revelam o inconsciente que em silêncio se ergue mais alto que todos os sons. 

Ser sensível é viver além da vida, desvendar o ouro nas lamas, é colher tanto do exterior que temos de o devolver em arte a partir da maturação que se processou em nós. Ser sensível é amar além do amor, é não existirem palavras para descreverem o mundo como o vemos, como o sentimos. Ser sensível é também sofrer dores incógnitas, sem nome, não inteligíveis pelos insensíveis, sofrer por sofrer, só para sentir o sofrimento, sofrer por não haver lugar, sofrer pela incapacidade de erguer monumentos à vida, poesias e melodias etéreas que lhe façam jus. Sofrer a frustração de termos tanto dentro de nós, retido num espaço demasiado exíguo apenas libertado a quem nos decifra, a quem é igual a nós na sua sensibilidade.  

É necessária sensibilidade para compreender que o sentido é sentir e todas as experiências são a matéria prima para a arte. O caminho é traçado por nós.  Da dor verter-se-ão poemas, do amor verter-se-á a eternidade humana. 

Há a vida para nos inspirar e a morte para nos lembrar de sentir.

MF



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