domingo, 8 de março de 2015



Alma carnal


Talvez a libertação não seja a cisão do corpo e da alma. Talvez a libertação seja o seu oposto - um auge combinatório destes dois, a sua junção infinitesimal. Corpo que se confunde com alma na minúcia poética dos seus gestos. Alma que se confunde com corpo, num quadro abstrato de camadas de diferentes densidades sobrepostas, substâncias compactadas num fino plano que flutua divino. É a fusão das partes que liberta o todo, a redução do abismo ao nulo com o toque de superfícies distintas que anseavam a completa independência uma da outra : Corpo sem Alma - descida ao puro instinto, animal; Alma sem Corpo - ascensão a planos mais altos, eternos e limpos. Mas a alma é material, consciência volátil dentro de um corpo de sangue e carne que aos poucos a tenta exteriorizar, cada detalhe informe, essência escondida sublime, caminhando e falando como ela sente, assumindo no rosto a serenidade ou a tempestade desta; e o corpo é também imaterial, é meio, ponte para o além corpo, tábua onde acontecem sensações que roubam o chão e galvanizam a razão.

A alma só vive por ter corpo e o corpo só transcende por ter alma. Soltar o corpo é soltar a alma e soltar a alma é soltar o corpo...

Prende-me então as mãos. Para me soltares o corpo. 
Prende-me. Contra nós, as nossas almas na confusão dos corpos. Arranca-me da órbita da razão e dos passados mal curados, esvazia-me de palavras e conceitos e filosofias. Marca-me o ritmo da respiração. Encontra-te comigo no limiar de um beijo. Desacelera o tempo por instantes. Faz-nos sentir dois universos misturados num festim de preenchimento dos espaçamentos que dizíamos impossíveis de colmatar. Rejuvenesce-me, mistura-me o corpo com a alma.
Ouço-te o sangue e a escuridão é o nada de tudo excedente. Ouço-te a vida, sou cada célula tua, sou cada célula minha. Rodaram-me a cabeça, desequilibrado equilíbrio, bom acordar dos sentidos, bom acrescento de outros. Ouço-te todo o corpo. Não há razão para desejar a fragmentação. Não há razão para desejar a solidão. Ouço-te todo o corpo e talvez toda a alma.Vi-te. Vi-me. Sem que existam palavras que pintem o que ouvi, o que vi. É fora do plano da razão. É o mais humano que podemos ter. É o mais deuses que podemos ser. Corpos incorpóreos. Almas carnais. Mais que abstrações de pobres mortais ( somos mais que os deuses), somos reais.



MF 

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