sábado, 3 de outubro de 2015

Estandartes ulteriores de Saudade.






Amo vastos desertos insonorizados onde o espírito fecunda de palavras o espaço entre mim e o céu
o exílio secular enche-me de febris acessos visionários, 
inebria-me o sangue de confusões e certezas - eu não sou daqui.
do outro lado, a aparente fervilhante vida, violada todas as noites e todos os dias sem descanso
não, eu não sou daqui, faço a apologia do silêncio e do paganismo
só há eu e deus, imanente na quietude perfeita dos cheiros nocturnos, das folhas e do tecto pontilhado de estrelas a distâncias impossíveis umas das outras, nos seus próprios desertos, que fulguram e que crescem sem poder conter o seu interior de se expandir até à sua própria extinção, extinção que nunca houve a certas distâncias, porque, se recuarmos o suficiente, podemos até vê-las nascer sem que alguma vez saibamos se estão realmente a nascer e que sortilégio é o tempo.

Antes, temia os desertos, nada mais eram que lugares para morrer, lugares contíguos às arestas do delírio infrutífero onde gritava por alguém, sem saber ainda, não podendo aceitar ainda, que não havia ninguém. 
Só há a aceitação. Só há essa comunhão com a quietude que nos fala sem que possamos distinguir as palavras. Só há essa Beleza às vezes bebida, tocada ao de leve na imperfeita, mortal, esquiva, confusa incompleta vida, e trazida, meditada no deserto em grandiosa oração a tudo o que foi, a tudo o que é, e a tudo o que será. Compartilho com presenças da fibra nuclear do meu ser a abstracção febril de um único grande poema nutrido por essa indistinta grande árvore humana, compartilho a abstracção incerta de um devir de alguma forma destinado à grandiosidade, ainda que sobre os estratos do erro, do frívolo.

Amo vastos desertos insonorizados onde me nascem protótipos de entendimentos, maturados no silêncio, no coração do coração, porque tudo nasceu lá em cima no silêncio, e no primordial mar na terra sem espectador, no silêncio, o Milagre.

Mas no silêncio há também a nostalgia de um mundo. Um mundo dentro do mundo, um mundo que salva deste último algum frenesim, alguma imperfeição, algum abandono, coragem de morrer não tendo feito parte de nenhuma tentativa de resposta, de nenhum exército de criadores cuja volição roçava a loucura e estirava os nervos que discorriam sem repouso em busca de dores e artes imortais e esplêndidas com o seu nome, alma, inscrita em cada pedaço. Nostalgia de um mundo que não sei se está cá, ou se alguma vez realmente esteve, porque criado na idade sem idade. Pergunto-me então: "Nostalgia de um mundo ou tempo?"  - um tempo dentro do mundo do qual não faço parte, apenas desse tempo, e, no seu contexto infinitesimal, poesias sem nome, acuidades sensoriais que mergulharam os meus olhos na essência de cada cor e, alheia que estava, eu nem sabia - herdava sem querer, estranhos estandartes ulteriores de Saudade.



MF

William basinski - https://www.youtube.com/watch?v=O85sK8l_Yg8

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