quarta-feira, 18 de novembro de 2015






CAOS

(apago o candeeiro e escrevo)



I


é uma paisagem aguada, as guitarras distorcidas,
o gelo sugerido, o vento cortante, a cinza,
a impossível visão sinestésica,
submersa, envolta pelo som, pela quebra
tenho músculos débeis,
não sobrevivem um único dia completo,
e mergulho na paisagem aguada, desmaio a sensação
recito cartas a todos os que amo, antecipo todo o futuro
com a mais fria certeza, a condenação fúnebre, soturna
o meu olhar impávido devolvido pelo espelho,
esse sem vida reflexo, a inevitabilidade prematura
a idade sem possibilidade de se acumular por muito mais
porque, porque... não sei...
os meus músculos anímicos azuis, anémicos,
disseram-me hoje para me manter assim tão calma
mas são cascatas que rompem através da terra,
e de noite reconstruo o tempo, reconstruo a possibilidade
reconstruo as peças desvairadas num mecanismo obsoleto
reconstruo a ciência de sentir, de acreditar,
aquilo que o espelho me interrompe, e eu desvio a atracão gravítica
desse meu próprio olhar ausente, porque tenho de ficar aqui

II

medito dentro, professo as minhas coisas mais guardadas
eu esmago o corpo, a alma, aqui,
eu esmago a dor nas páginas multi-versificadas
embebidas de um certo caos ordeiro e necessário de purgar
eu digo Pai, eu sei que fizeste tudo o que pudeste
não falo da minha mãe, mas ela também está nesse conceito
o conceito flutuante de amor ligado pelo sangue
que se mataria para salvar o meu próprio sangue
eu digo Pai, não o pai especulativo, metafísico, não
pai, de Pai, Pai que chora quando o médico lhe diz
que o meu coração está curado
mas pai, ele nunca se curou, não no sentido visceral, metafísico
porque o mais visceral sempre foi indizível, intocável, invisível
curiosas, as palavras, penso agora
o meu coração nunca se curou, há ainda uma pequena brecha
que se abre mais e mais,
e há um sangue venoso que contamina o arterial
dias em que nem sequer respiro, e cada orgão meu desfalece um pouco
até se recompor na noite, (quando nas noites o meu outro eu se não esquece também de respirar)
dentro transmuto o mundo inteiro, e há misturas de destroços e faíscas exorbitantes,
gostava que vissem - esses espectáculos pirotécnicos no meio da escuridão
com rastos de lodo, sombra, agulhas, toxinas, que soçobraram da diferenciação
das coisas que levei para olhar de mais perto, descamá-las e erguer um tecto
com as minhas próprias estrelas

o meu coração,
o meu coração,
que se não organiza, que não fecha, que não retoca, a divisória corrompida,
fendida, num qualquer dia sem nexo, nem data, nem lugar,
um negro tingiu a infância
eu digo Pai, eu sei que fizeste tudo o que pudeste,
mas nunca me choraste as lágrimas profundas, remetidas a este coração do coração
eu sei: a superfície mente, os meus olhos, os meus lagos opacos,
o meu riso no intervalo das horas ácidas, as minhas palavras de coragem
eu sei, que o que jaz por debaixo da pele só eu sei
apenas eu, deslindo a confusão dos sonhos, e os divergentes sentidos das palavras
e eu reconcilio o meu caos, eu deixo o meu caos correr na tinta
eu deixo os aleatórios chamamentos condensados num mesmo poema
eu digo Pai,
eu digo coração,
eu digo som,
eu digo paisagem,
eu digo cansaço,
eu digo sensação,
eu digo visceral,
eu digo superfície,
eu digo amante (digo: amo-te, espero-te bem, se eu Esperar)
eu digo loucura,
eu digo estilhaços,
eu digo espelho,
eu digo sonhos,
eu mergulho
eu ascendo
eu queimo
eu morro
eu nasço
e quebro em estilhaços e procuro a luz tacteando a sombra
e desdobro o tempo e medito o espaço, e lembro-me
dos rostos, das vozes, dos lábios, das mãos, do tacto, das ruas, da luz, da noite, da praia, da casa,
da cidade, da camisa, do perfume, do regresso, da floresta, do céu,
dos corredores, das sirenes, dos gritos, dos sismos, dos comprimidos,
dos quartos, dos cadernos, do piano, e tudo soa loucura
sofro a loucura e a lucidez inquieta,
sofro de me esquecer, sofro de me lembrar
a união-separação. o amor e as facas. os sonhos e a morte.
tudo junto num só poema

gostava que tivesses coragem, Amor,
gostava que tivesses coragem, meu próprio coração,
gostava que não quebrasses sem causa analítica, circunscrita, funcional,
gostava que fosses, que tivesses a certeza de que florescerás
gostava que batesses,
                                   cem mil vezes por dia.




III


e eu disse:
sem ganância os caules vergar-se-ão, as folhas tocarão
a pele fina dos teus dedos, sem que te tenhas movido um milímetro
sem ganância, abdicarás das palavras para veres Deus num raio de sol,
convertido dentro a sua mensagem
sem ganância, ouvirás o silêncio falar-te a triste e falsa canção do medo
e a canção do silêncio extirpá-lo-á do teu coração
como doce entendimento sem voz, entendimento que se esquece
porque saíste da dimensão do humano e voltas esquecido ao teu corpo
eu sei, eu sei, eu sei, que sem ganância aportarás nos portos exóticos e resolutos
os portos sem origem, os portos passados e futuros
os portos da solidão transfigurada na abóbada esbelta, nas pétalas desabrochadas
de rosas sem nome, rosas de sangue e cores que tocas, que cheiras, que degustas
sem ganância, dissolver-te-ias na corrente fluída,
que se auto-fertiliza exponencialmente através da resistência fluída,
o mecanismo regulador da entropia automatizado, a paz não ingénua, a paz
que conserva ainda a lágrima grande nos lábios, no coração dos lábios, porque és ainda humano
e serás humano até ao fim, porque todas as vezes descerás para dizer
que entendeste o universo, o amor, a morte, a vida, num aguado micro-segundo
os teus olhos estarão abertos de tanta lucidez não lúcida,
de tanto saberem sem poderem no entre-tanto guardar
eu disse:
talvez seja a ganância, a raiva de querer saber o mundo porque não te amas,
porque não te amas,
porque não vives um segundo que seja de cada dia
cada dia um dia igual, para ti, cada dia,
uma veia entupida,
um tronco na estrada,
uma montanha nas costas,
uma respiração sofrida,
cada dia, um anti-vida, uma colecta de gestos para justificar a tua raiva,
uma colecta aleatória de gestos, de pensamentos, de abismos, álibis
tenebrosos que te desculpam a alma, de não saber ser,
parece tão intrínseca, tão irrevogável, essa incapacidade, eu sei,
mas apenas sem ganância, Serás.

                                                                                                      (to r)


MF


A ouvir,
René Margraff : https://www.youtube.com/watch?v=uZLvhKYlwHE
Aarktica-: https://www.youtube.com/watch?v=-n6DlN3B9fo
                 https://www.youtube.com/watch?v=5JBQCv909eo




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