quarta-feira, 20 de janeiro de 2016



19 de Janeiro

Murchei. Tantas vezes. Como pude eu murchar? Quando gravitavam em torno de mim anjos com corpos e chagas humanas que brilhavam a despeito da morte, do medo, do omnipresente medo imanente a nós humanos. Acho que o medo é condição indissociável de ser humano. Mas não de ser. O medo constitui a barreira que inviabiliza a mera possibilidade de ser. Porque o ser é leve, o ser é uma queda que ascende e o coração estremece ante essa investida que nos parece sobrenatural, quando nada é mais natural que ser. Talvez tenha sido um dia em que se nos usurparam a inocência e pensámos que ela ficaria para sempre lá atrás, nas imediações da infância. Mas descobri alguns dias, como ao ler o teu texto, que a infância sempre estará cá, preservada em resquícios da alma, e ela acorda no rasto de cada palavra, metáfora certeira de encontro ao coração do coração, ao mais visceral de nós. E choro lágrimas metafísicas porque me vês, porque me viste, e sabes-me a escuridão e a luz, sabes-me o peso e a leveza, sabes-me o olhar perdido, sem vida, pelas paisagens da lua, mas os meus pés ainda no chão, ainda na terra, nesta espécie de limbo, de desassossego, incerteza liminal. Era uma flor emudecida numa estação de estridentes sóis, e pontes para ser. E alimentava um silêncio sem colheita para o crescimento. E o meu olhar sempre virado para o que foi, como se apenas se pudesse sentir lá, e nunca aqui, nunca agora, onde agora realmente estamos. E era somente um corpo com algumas centelhas de luz recolhida em dias de perfeita suspensão. E eu podia recitar mil poemas e dizer-te a vida que preenche o nosso sangue, e todas as coisas à espera que as fosses sentir, e ser somente uma porta-voz, um artefacto de humano. Mas ensinaste-me que a vida é mais que um olá seguido de um adeus sempre cedo de mais, sempre sem tempo de poder ser revestido de alguma espécie de sentido duradouro que convalesça a perda. Ensinaste-me, tu, apenas tu, as tuas palavras e o teu ser, que nos marcamos de formas tão belas que não podíamos simplesmente ir embora. E então fazes parte da minha vida, e eu faço ainda parte da tua e somos guias um do outro, caminhamos ao lado um do outro, e relembramo-nos, mutuamente, a estar aqui simplesmente, perdidamente como tu bem disseste, celebrar estarmos perdidos, quão belo, porque é perdidos que fazemos por nos encontrar. Aceder ao mais intrínseco de nós, esse milagre do toque anímico, esse milagre de sorrir e chorar ao mesmo tempo, esse milagre ainda maior de saber o que faz o outro sorrir ou chorar. 

És tão belo. Lembro-me de ti, os teus devaneios brilhantes e és tão jovem, a tua espontaneidade, e esse algo inexplicável que me faz instantaneamente sentir bem e confortável, como uma energia que da tua carne-alma emana. Lembrar-me-ei sempre como me viste mesmo antes de me veres. E o alcance dos teus olhos permitir-te-ão alcançar tantas mais coisas. Não tenhas medo nunca amigo, não tenhas medo. As coisas encaixar-se-ão, olha à tua volta e repara, aliás, relembra - como tudo se processou para ser o que é agora. O sentido somos nós, aqui vivos. E há várias vidas dentro da vida. Ocupa-te com a principal. Esta vida. De transcendente partilha e mãos englobando os corações alheios. Sabe tão bem o esforço da corrida porque é no movimento que nos sentimos vivos, e todas as adversidades mais não são que oportunidades de descobrires em ti ainda mais inesgotabilidade. Somos humanos, deixa que seja uma viajem alucinante, deslumbrante, venha o que vier, seja o que for. Estou aqui. Estás aí. E há sempre um café para nós, um passeio à beira rio, um poema, uma música, um simples pensamento que desencadeia toda uma nova rede de implicações e possibilidades. 

Há algo que nos escapa, algo de essencial – é quando murchamos. E morremos tanto até viver, às vezes. Porque nos atafulhamos de ilusões e esquecimentos? Quando a principal vida é esta, a tua viajem da alma, a viajem da partilha, do amor, da leveza, o resto são as camadas externas.

Que sintas o quanto me és, 
 Mariana Ferreira





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