quinta-feira, 10 de março de 2016






Diz-me. Relembra-me ( porque hoje me esqueci)
 - Porque importa estar aqui?

A criança
Como poderia eu alguma vez ter sido
Criança
A criança entrava no teu quarto e dizia
“- Amo-te” para te acordar
E tu levantavas o rosto cansado e sorrias
E davas-lhe um beijo
E a criança não se recorda se nesse instante te levantavas por inteiro

Imploro. Não ao teu deus, não
Imploro ao vácuo, ao silêncio, à possibilidade
De novo ao silêncio para que me fale
Sangre e deixe de ser mudo,
Sussurre por dentro em resposta
 - Porque importa estar aqui? 
Diz-me. Relembra-me (porque hoje me esqueci)

A criança, ainda me lembro da criança
Vocês feriam-se com palavras altas, as quais não lembro
E ela dizia baixinho, “ - Não falem alto, que os vizinhos chamam a polícia

E eras quem eu mais amava, as histórias antes de dormir
E agarrar-me ao teu peito como os chimpanzés
E abraçar-te e chorar com medo de morrer, de morreres
(Foi atroz saber que o mundo girava impassível mesmo sem nós)
E na praia, rias, como raramente te via, e abrias os braços
Como os espíritos livres, e sabia que estavas viva
Viva como não estavas nos dias.

E um dia disse a mim mesma que nunca mais me farias chorar
Porque doía de mais não te conseguir acordar
Quando te fechavas no quarto ainda o sol suspenso sob o dia
Mas a nossa casa sempre foi escura, com pouca luz
O corredor até ao teu quarto,
O mais escuro da casa, e eu percorria-o
e não me lembro de haver mais alguém

Sim, há só nós, isto é entre nós, pergunto-me se alguma vez eles souberam
e foi sempre a criança da casa, confusa, que chegava até a ti
e tu sorrias e dizias que também a amavas e acho que perguntavas
como te podia amar, se te deitavas e ainda era dia

Sim, esta é uma imagem que tenho, que repercute ainda em mim
Não há nada a perdoar
Eu sei, que é difícil viver
E ainda tens toda a nostalgia do teu próprio sol
Que só tu vês,
E vejo-te o brilho nos olhos quando falas da cassete que recebeste
E da praia, e de como a vossa história dava um filme
E revejo-me em ti quando me dizes que é tão imenso
O poder de uma canção, que todas as fibras vibram de saudade
E que preferias nunca ter vivido nada daquilo
Porque dói tanto viver depois, o peso dos quadros perfeitos
O peso de um coração um dia tão cheio
E agora não há sangue, e fazes e desfazes malhas e passas toalhas lisas
E aspiras o mesmo chão cem vezes
Para não chorares por dentro.

E junto-me a ti derrotada e pergunto-me
 - Porque importa estar aqui?
Mas não te digo nada disso, digo
Que aqueles dias foram tão poucos porque foram sempre eternos,
(desde o primeiro segundo.)

Não há nada a perdoar, parece que ainda ouço,
O perdão gritante nos teus olhos, naquele quarto,
Para aquela criança, que não sabia porque estavas ali
E naquele mesmo quarto te fechaste
E juro por deus que não te perdoo (daquela vez)
Se foi mesmo a tua intenção
A criança há muito que cresceu, e não cumpriu a si mesma
A promessa de não chorar mais por ti
E na sala chorou, as mãos na cabeça, tu no quarto trancada
E preparei-te comida, e bati à tua porta, e não te reconhecia
Não mais, aquela não era a minha mãe, não eras tu
E obriguei-te a vestir, e liguei ao pai, e ele levou-te
E não sei porque ainda recordo isto
Tiveste saudades nossas lá, e querias voltar para casa
E eu disse que tinha saudades da tua comida
E nunca mais esqueceste
E não me lembro de nada, não me lembro de quase nada
Quando lá cheguei
Apagou-se da minha memória
Apagou-se da minha memória
Quanto mais esqueci? Arrepia-me, o esquecimento
E a nostalgia, e o envelhecimento, herdei isso de ti
Eu sei, não sei se te perdoo isso, mas perdoo
O teu cansaço, o meu,
Porque eu sei o que um dia escrevi
O meu conto do pardal,
Encontrei-o lá, encontrei-te lá, encontrei-me lá,
Aqui mesmo:

Adormeceu, debaixo de uma árvore, quis adormecer como os pardais. Pegaram nela uma, duas vezes. Recusou-se a comer. Recusou-se a acordar, e dessa vez percebeu que era maior a dor de morrer nas mãos do amor, do que a dor de ver morrer o amor nas suas próprias mãos. E em silêncio, perdoou o pardal...



MF



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