Diz-me. Relembra-me ( porque hoje me esqueci)
- Porque importa estar aqui?
A criança
Como poderia
eu alguma vez ter sido
Criança
A criança
entrava no teu quarto e dizia
“- Amo-te” para te acordar
E tu
levantavas o rosto cansado e sorrias
E davas-lhe
um beijo
E a
criança não se recorda se nesse instante te levantavas por inteiro
Imploro.
Não ao teu deus, não
Imploro ao
vácuo, ao silêncio, à possibilidade
De novo
ao silêncio para que me fale
Sangre e
deixe de ser mudo,
Sussurre por
dentro em resposta
- Porque importa estar aqui?
Diz-me. Relembra-me (porque hoje me esqueci)
Diz-me. Relembra-me (porque hoje me esqueci)
A
criança, ainda me lembro da criança
Vocês feriam-se
com palavras altas, as quais não lembro
E ela
dizia baixinho, “ - Não falem alto, que os vizinhos chamam a polícia”
E eras
quem eu mais amava, as histórias antes de dormir
E agarrar-me
ao teu peito como os chimpanzés
E
abraçar-te e chorar com medo de morrer, de morreres
(Foi
atroz saber que o mundo girava impassível mesmo sem nós)
E na
praia, rias, como raramente te via, e abrias os braços
Como os espíritos
livres, e sabia que estavas viva
Viva como
não estavas nos dias.
E um dia
disse a mim mesma que nunca mais me farias chorar
Porque doía
de mais não te conseguir acordar
Quando te
fechavas no quarto ainda o sol suspenso sob o dia
Mas a
nossa casa sempre foi escura, com pouca luz
O
corredor até ao teu quarto,
O mais
escuro da casa, e eu percorria-o
e não me
lembro de haver mais alguém
Sim, há
só nós, isto é entre nós, pergunto-me se alguma vez eles souberam
e foi sempre a criança da casa, confusa, que chegava até a ti
e tu
sorrias e dizias que também a amavas e acho que perguntavas
como te
podia amar, se te deitavas e ainda era dia
Sim, esta
é uma imagem que tenho, que repercute ainda em mim
Não há
nada a perdoar
Eu sei,
que é difícil viver
E ainda
tens toda a nostalgia do teu próprio sol
Que só tu
vês,
E vejo-te
o brilho nos olhos quando falas da cassete que recebeste
E da
praia, e de como a vossa história dava um filme
E revejo-me em ti quando me dizes que é tão imenso
O poder
de uma canção, que todas as fibras vibram de saudade
E que
preferias nunca ter vivido nada daquilo
Porque
dói tanto viver depois, o peso dos quadros perfeitos
O peso de
um coração um dia tão cheio
E agora
não há sangue, e fazes e desfazes malhas e passas toalhas lisas
E aspiras
o mesmo chão cem vezes
Para não
chorares por dentro.
E junto-me
a ti derrotada e pergunto-me
- Porque importa estar aqui?
Mas não
te digo nada disso, digo
Que
aqueles dias foram tão poucos porque foram sempre eternos,
(desde o
primeiro segundo.)
Não há
nada a perdoar, parece que ainda ouço,
O perdão
gritante nos teus olhos, naquele quarto,
Para aquela
criança, que não sabia porque estavas ali
E naquele
mesmo quarto te fechaste
E juro
por deus que não te perdoo (daquela vez)
Se foi
mesmo a tua intenção
A criança
há muito que cresceu, e não cumpriu a si mesma
A promessa
de não chorar mais por ti
E na sala
chorou, as mãos na cabeça, tu no quarto trancada
E preparei-te
comida, e bati à tua porta, e não te reconhecia
Não mais,
aquela não era a minha mãe, não eras tu
E obriguei-te
a vestir, e liguei ao pai, e ele levou-te
E não sei
porque ainda recordo isto
Tiveste
saudades nossas lá, e querias voltar para casa
E eu
disse que tinha saudades da tua comida
E nunca
mais esqueceste
E não me
lembro de nada, não me lembro de quase nada
Quando lá
cheguei
Apagou-se
da minha memória
Apagou-se
da minha memória
Quanto
mais esqueci? Arrepia-me, o esquecimento
E a nostalgia,
e o envelhecimento, herdei isso de ti
Eu sei,
não sei se te perdoo isso, mas perdoo
O teu cansaço, o meu,
Porque eu
sei o que um dia escrevi
O meu
conto do pardal,
Encontrei-o lá, encontrei-te lá, encontrei-me lá,
Aqui mesmo:
Adormeceu, debaixo de uma árvore, quis adormecer como os pardais. Pegaram nela uma, duas vezes. Recusou-se a comer. Recusou-se a acordar, e dessa vez percebeu que era maior a dor de morrer nas mãos do amor, do que a dor de ver morrer o amor nas suas próprias mãos. E em silêncio, perdoou o pardal...
MF
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