terça-feira, 27 de setembro de 2016


I

eu tinha algo a escrever
que tentarei encontrar, 
 - arrancar dentro,
(melhor escrevendo)

talvez fosse um pensamento
sobre ser impossível tanta Beleza às vezes
os meus olhos tão abertos
" é a primeira vez que respiro"

as árvores recortadas negras contra um céu difuso

II

dei as minhas flores a jarras tortas
e a Memória tornou-se noutra coisa
que não saberia nunca dizer senão assim -
fez-se física. levou-me o corpo.
para cada ontem supersónico e eterno.

III

eu não sabia que podia morrer
e quando soube não soube
viver

e isso era tudo o que tinha de saber

/

podia explicar-te através de uma palavra
e não entenderias - cansaço

cansaço atrás do vidro, cansaço
corrida ao fim da tarde tentando respirar, trazer para dentro
uma mão no coração,
um eixo na cabeça,
que organizasse o fluxo, turbilhão de perguntas e visões
visões de anseios, amor ou outra coisa, amor ou entendimento
iluminação, equilíbrio, ponto, centro humano de luz,

amor ou outra coisa amor.

IV

nunca mais a fuga para um lugar obscuro
onde as lentes são banhadas num negro viscoso

nunca mais a pedra e simultâneo choro,
peso no peito, pálpebras num grito mudo

não se querem fechar, não se querem fechar
foram dias estranhos, de poesia e excursões selvagens,
(para voltar a ver -)

talvez o ar gélido purgasse, talvez um súbito certeiro verso
me acordasse

foram dias que (quase) nunca existiram senão num diário
de tão apagados, o lento degelo, o quebrar das tábuas
fragmentos de procura,

pancadas à porta do coração
como se o coração estivesse longe
ninguém atrás da porta, ninguém -

um rosto, um amante, um eu profundo e sapiente e pai
e mãe, irmão, outra coisa por favor que o humano já não chega.


V

às vezes deitava-me às escuras
com os olhos fixos em nenhum céu

o tecto pejado de sombras e as mãos
entre a almofada e a cabeça

uma ínfima pulsação ouvindo-se cavalgar
lá ao longe, muito longe

o olhar impávido, já seco, aberto
(as cascatas vieram outra noite)
sonhavam outra vida que não veio nunca mais

da cabeça até ao peito...não sei dizer
nem inventar uma palavra

da cabeça até ao peito...acho que todo o amor
e tristeza juntas

são estranhos dias. e estranhas e mais sozinhas noites
um dia dirás - foram.
absorta na incompreensão de algo que quase atinges
no seio confuso e triste da tua recolha -

uma espécie de Beleza gelada
a flor cravada, contorcida, num campo de batalha.

VI

e se absolveres todos os amantes pensarás
todas as cinzas e feridas foram sopradas para longe

mas tens ainda a tua mãe,
teu pai,
teu amigo,
teu irmão
numa toca muito escura
sem escadas ou túneis de acesso real

e cais no chão e as lágrimas se falassem diriam
eu não sei eu não sei...

vida - nem sempre te matamos não te deixando morrer
no esquecimento das tuas mágoas
que teimamos em não esquecer

às vezes esquecemos
aquele acidente,
aquela imperfeição em espírito e em ato,
aquele amante (que o corpo não podia nunca esquecer),
aquele rancor calado para sempre,
a carta nunca enviada, o abraço último (que só aconteceu num sonho afinal)
o que fizemos, o que não fizemos,
o que não fizemos...

às vezes é outra coisa
que nos atinge a nós - livres das âncoras do Ontem
às vezes é isto
de não poder ser porque somos tão pouco
e pequenos e com sonhos grandes,

(insidiosa arquitectura, a do nosso coração)
dóis-nos tanto...

plantas em nós tanta pressa de ver, tocar, amar, criar

e não há realmente Tempo ou Espaço,
para toda a dança e grito e canção que pressentimos dentro.

e morremos de não ser(mos) inteiro(s).



MF
















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