terça-feira, 10 de janeiro de 2017



sinto outra vez o peito despido,
e eu fui cantadora de sonhos
sinto outra vez o peito a cair,
e eu sei que há alguém
para ouvir as minhas notas e cantar-me ao ouvido
as coisas que já não ouço

e dizer-me 
és apenas humana então chora
mas volta
não te esqueças de voltar
e calar os gritos cínicos de quem morreu e ficou ocupando o seu espaço
e todo o espaço dos que sonham, com os seus medos

pai, eu quero viver,
e sou ainda a tua criança se me deixares partir
eu nasci com olhos gigantes e lembranças de paisagens que esqueci
e estou vagueando dentro e em torno de tudo
esperando o sentir plácido e glorioso do sol e das cidades a acordar

pai, eu quero viver,
no mais fundo da melancolia minha que nunca soubeste,
eu quero viver
e chorei tantas vezes sem saberes. e ri tantas vezes sem saberes

há uma nota*, outra vez, que me faz chorar
foi ela que me encontrou enquanto pensava numa mão
mais que humana
quando só o humano me interpela e me faz ficar,
mas eu chamo às vezes
por coisas que não se formam à imagem da razão e são outra coisa
mais que humana

eu não quero morrer, sem primeiro ir embora das terras
enlameando os meus pés
pai, diz-me o que calas quando estás imerso dentro do teu próprio abismo
diz-me se te doem os lugares aonde não foste
e se sofremos não morrer da única morte aceitável - o amor
que nos emerge e submerge, pelo mais alto, pelo mais baixo;
diz-me o que dói, quando dói, aonde dói
não  te abandones à morte e não ma dês de herança
cantam-me canções dentro. elas vivem no seu ante-ser
e o meu eu maior salvando muitas vidas, não gostarias de ver?

eu tenho um sonho ainda, morrendo nas cinzas
da tua mundana descrença
e soluções pragmáticas e lógicas
e deste-me quase tudo para florescer
menos o sonho que fui beber
a paragens tão longe do meu berço

e sonhos tão humanos pai, tão maiores que sonhos de criança
sonhos de amor, música, poesia
um mundo um pouco melhor do que antes de chegar
ingénua, criança louca e inocente, aqui é o lugar dos becos dizes
onde não posso caminhar
à noite
sozinha, menina,
pões-te a jeito, dizes, e só fazes o papel de todos os pais
mas sê, por favor, o meu pai
e vê para além da desrazão do medo
e seu veneno que nos cria raízes no seu solo-bolha
que nos prende a uma casa pagada com o suor dos nossos corpos
e o tempo precioso das engrenagens criativas
das nossas mentes
e corações.


MF


*
https://momentumf.bandcamp.com/album/rites-of-passage
More than a human hand , minuto 2:58-3:00









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