segunda-feira, 21 de abril de 2014

Há um tempo




  Há um tempo em que irás perceber que o tempo e o destino não estão do teu lado, são impessoais, por mais belas que sejam as tuas histórias. Há um tempo para viveres gloriosamente e para caíres a seguir. Um tempo para amar, para sofrer, aprender e ensinar,  para te curares e recobrares a centelha de vida levada com cada pessoa que partiu do teu coração. Um tempo para recordares tudo aquilo que te quebrou e tudo aquilo que te fez vivo por instantes. Porque a vida não é um recreio eterno, é um espaço para o desenvolvimento pessoal, apenas conseguido na meditação sobre cada fracasso, cada desdita, quando ela te abana e testa até um limite que julgavas não aguentar. Há um tempo em que irás perceber que todos os teus gestos e palavras te irão definir, perceber que o perdão é algo necessário para te libertares das cargas que te pesam, um ato de misericórdia para ti próprio. Há um tempo em que irás perceber que a maior parte dos caminhos terás de percorrer sozinho, que o abandono é inevitável, as relações deterioram-se, não são quadros estáticos - Mas o amor é a única coisa pela qual vale a pena sofrer. Há um tempo em que irás aprender a humildade, aprender que, no fundo, somos todos iguais, uns mais iguais que outros, mas iguais. Perceber que tudo já foi dito por quem já viveu antes de ti, ou mais vida que tu - Mas vale a pena ouvir de novo, por outras palavras, tudo o que trouxeste à vida dos outros, tudo o que carregaste nos teus ombros tão fracos. Há um tempo em que irás perceber que a beleza está nos movimentos, na paixão dos olhares, numa gargalhada sentida, numa alma que se ergue de um mesmo chão, vez a após vez, porque vislumbra além alguma coisa pela qual viver, que inventa e sonha em verde, sob um céu cinzento. Um tempo em que irás perceber que não chegaria uma eternidade literal, viveres mil vidas numa só, para tomares posse de toda a sabedoria da existência, para se te influir todas as sensações de prazer ou dor, para te conseguires expressar de um só fôlego, e resumir toda a tua vida num perfeito epigrama. Há um tempo em que irás ver que as palavras não conseguem alcançar os conceitos que tentam descrever, e não há conceitos mais inexprimíveis que o Amor, a Solidão e a Saudade. Mas há um tempo em que irás perceber a mensagem de cada canção, porque carregas em ti as cópias das histórias universais cantadas, do amor, da perda, da solidão ou da saudade. Há um tempo em que tomarás consciência que raras são as pessoas capazes de te ler, de ver através de ti, todo o potencial que nem tu mesmo conheces. Tira-te então de ti, tira a ferros todas as palavras, deixa ser som a tua essência. Um tempo em que perceberás que se não correres, estás morto e aquém de ti, o tempo irá passar e não terás nada que te alimente a partir de dentro. Um tempo em que perceberás que o Amor não pode ser droga anódina, a solidão não pode ser a casa de ninguém, nem as memórias a cama onde descansa cada lágrima passada, onde deixas de viver para recordar.
  Neste interregno entre a vida e a morte somos efémeros fora de nós, efémeros os lugares, as pessoas, as emoções. Mas somos eternos nas memórias - Imagens ténues, imateriais, que parecem prontas a desvanecerem-se se não fosse a nossa compulsão por as reavivar, porque amamos as suas cores. O passado afigura-se a outro mundo, dentro deste. O passado é outro céu, outro Sol, outro eu. Misteriosas as malhas em que se tece o nosso destino, implacável. Curiosas as personagens que se nos atravessam no caminho, animados de vida, para nos dar lições, para se gravarem em nós sem autorização, ou para nos gastarem o tempo. Não sentimos nunca o que já sentimos, no mesmo espetro de intensidade ou quantidade, não encontramos nunca as mesmas cores, e por isso ali descansamos em lugares sem tempo.
  No fim estamos todos sós, recolhidos e escondidos em nós. Em horas de abstração perguntam-nos " - O que pensas?" e nós respondemos, cansados, "Nada.". Mas nesses momentos, não estamos cá, os nossos olhos sem expressão estão ocupados a vasculhar, a explorar o nosso mundo, as nossas histórias simplesmente complexas, singelamente belas ou tortuosas, os nossos fracassos, as nossas glórias, sonhos e memórias -  Tudo aquilo que nunca conseguimos deixar para trás, porque não há onde deixar tudo isso. Recordamos vozes, cheiros e imagens perenes, e então, estaremos realmente sozinhos se nos recordarem também?

MF

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