quarta-feira, 4 de junho de 2014

A (im)Persistência da Memória


    Memória - A custo tento recordar  cada voz, cada olhar, cada palavra, mas apercebo-me que o tempo dissolve tudo e tudo torna baço. Não me lembro do timbre de vozes que queria lembrar e ouvir na minha cabeça, só para me sentir ali, em algum lugar, em algum tempo só meu, de novo. Tudo se dissipa, tudo se torna vago como que submerso por um mar imenso opaco, onde reina o silêncio e um torpor difuso. Tudo se dissipa, para dar lugar a novas memórias. 
   É irónico, como hoje quero apagar as mesmas memórias que amanhã irei chorar pela consciência de já não mais conseguir discernir as feições dos rostos que amei, ou o som das vozes e risos de outros tempos, tão distantes que poderiam pertencer a uma outra vida; É irónico, como desejávamos tanto sair daquela escola e agora que sentimos tão próximo o tempo da mudança e da partida,  só desejávamos ficar mais um ano, pois, afinal, fizemos tantas memórias, crescemos ali. Iremos rir de todas as histórias, recordar cada amizade, cada dor, cada amor de adolescência, e iremos perceber que aquela foi a melhor idade da nossa vida. Iremos desejar que o universo colapsasse e o tempo voltasse para trás, iremos desejar, com as lágrimas a forçarem saída e com uma ânsia desolada do mais fundo do nosso ser, estarmos numa estrela a tantos milhões de anos luz que, através de um telescópio, pudéssemos perscrutar a terra nesses nossos anos verdes, pudéssemos ver-nos a todos, jovens, com o mundo no olhar e a pressa de viver, pudéssemos ver-nos de fora, como se de um filme se tratasse, cada olhar, cada momento. Nós, sozinhos numa estrela, com toda a ciência da vida, nesse presente tão assente no passado, veríamos imagens do que já passou. Para os nossos botões falaríamos," Não vás por esse caminho, não arrisques nessa aventura, sê tu mesmo, em cada momento, pois este é fugaz...", nessa estrela a flutuar no meio do espaço, ao vermos cada decisão impensada nossa, com a inocente  e impossível esperança calada, de que o nosso eu da terra ouvisse os nossos conselhos, através dessa distância e paradoxo temporal... Mas no fim diríamos, serenos, "O que foi, assim teve de ser, vivi da melhor maneira que me foi permitido viver, e agora, sozinha nesta estrela, choro esses dias tão felizes, descanso e rendo-me, envelheço com essas paisagens distantes nos meus olhos, ressuscito cada sensação perdida". Esta é talvez a possibilidade mais impossível que mais arrebata a minha imaginação, neste momento. À noite, muitas vezes me perdi no céu carregado de estrelas e pensei "Aquela ao longe talvez já se tenha extinguido, numa explosão catastroficamente poética, há milhões de anos atrás, mas ainda a vejo, tão nítida, tão magnificente o seu brilho..."; Assim é com o passado, mas quero mantê-lo, de alguma forma, vivo e assim, escrevo, escrevo para recordar, para registar aquilo que um dia irá desvanecer-se. Mais tarde, terei todas a minhas histórias mais brilhantes, mais sinuosas, para ler, e a custo, se o meu talento assim o permitir, poderei reviver, olhar o passado claramente, ainda que não passe de uma cópia tão baça, faísca, cinza ainda assim, que impressiona cada nervo meu.
   É misterioso como, quase aleatoriamente, momentos simples se gravaram em nós, sem autorização, e ganharam novas cores, significados e belezas que, na hora, não pareciam possuir, mas só na mente, na mente se fizeram poesia e nostalgia... 
Memória, pudesses tu persistir, contra o tempo que corre desgovernado...


MF

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