domingo, 3 de maio de 2015

"A sombra do medo de ser humano"

Para Metamorfose,

  Chorei. Chorei-te. Eras tu quem eu chorava por não te poder amar. 
  Também tu tão jovem e tão sabedor da melancolia e da morte. Da minha espécie…e sem te poder amar como queria. Mereces esta carta há tanto tempo. E tudo começou por causa das palavras e tudo termina em palavras.  Este é o nosso espaço, que te dou,  ficaste, ficas,  ficarás,... comigo nos versos e no coração que ainda tenho. "Ajudas-me em graus e dimensões extraordinárias, mais que mera ajuda, tocas-me a alma" - encontrei isto perdido num bloco. Espicaçavas-me para a vida, para um novo acordar. Algo do género " Eu também vivo apesar da minha dor, vive também, é uma ordem”. Comoveste-me. A tua dor e a tua alegria. E é assim que somos humanos - com epopeias em torno das nossas almas, com um chá, uma torrada, e meia dúzia de conversas num café. Lembro-me de me contares quase todas as cenas daquele filme. É hoje um dos meus preferidos. Sorri quando vi as cenas que tão bem relataste. Obrigada. Lembro-me de me comprares bolachas Oreo e de me ofereceres um poema quando sai do autocarro. Só o podia ler em casa e assim fiz. Se não estivesse a chover teria lido logo na rua sob a luz dos candeeiros. Guardo aquelas palavras, tu tentaste ajudar me cá dentro. Lembro-me das luzes da cidade à noite, de lançares ao rio uma moeda e pedires um desejo. A minha não chegou ao rio, caiu na berma. Não pedi assim o desejo de ser viva outra vez. Acho que só pensei nisto agora. É estranho não me lembrar do que pedi na altura mas não importa : não tive forças para lançar a moeda. No autocarro escrevemos um poema juntos, os teus versos eram sempre melhores que os meus. Lembro-me que por causa de ti voltei a beber leite com chocolate. Lembro-me de fazeres uma pizza. Lembro-me de comprarmos laranjas para o lanche. Lembro-me de sentir que finalmente tinha alguém. Lembro-me de te guardar o casaco e o relógio antes do jogo e de sentir que aquela era a metáfora de Kundera - que o amor começa com uma simples metáfora e eu pensei que a minha contigo era esta - O relógio e o teu casaco nas minhas mãos, como se fosses meu. E não importava que alguém tecesse comentários a respeito disso.
  És o maior "miúdo "que já conheci. Não te contei? Ele chamou-te "miúdo" mas nem sabe quem é Sartre ou Nietszche e nunca falou comigo a respeito da morte ou da melancolia. Não ouças, coisas de miúdos. 

  És poeta até aos ossos e humano além dos ossos:

"Nós, seres humanos, temos uma certa queda
para sofrer e para sobreviver, tu tens uma queda
para sentir o amor, e não o viver."


  Recito estes versos que me escreveste, entendeste-me por inteiro - “Tu tens uma queda para sentir o amor e não o viver”, meu deus… vivi até aqui para ler isto. Ternamente, tentaste curar-me. As tuas palavras abraçaram-me por dentro, cortaram a névoa densa até a mim. Propuseste-te a curas quase impossíveis, viste-me por dentro antes mesmo de me veres. Ainda hoje me pergunto:

como me viste?
como me sofreste?
porque é como se me soubesses,
o cerne vivo e morto de mim...


  Mas hoje vagueio pelos dias, arrasto os meus passos improvisados. Tenho graves problemas de melancolia, acho que herdei isto da minha mãe. Mas sou feliz. Melancólica e feliz. Apenas não te quis arrastar comigo para o fundo porque ainda não era eu no meu melhor. Eu sei que sabes que nunca te quis magoar. Eu sei que sabes o que é a melancolia. Mas tu tens tanto medo de morrer que vives, assim, com risos nas veias. Talvez me faça falta esse medo de morrer. 
Sou apática, mas digo em minha defesa que simplesmente demoro muito tempo a sentir, mas uma vez a vida em mim, Amo,
 em pólvora e sangue e vida...

  A tua alma faz-me chorar. Mas não te posso amar. Incapaz de amar todos os que realmente merecem o meu amor, talvez seja esta a sina imposta, o meu carma. Fizeste-me sentir o pressentimento de algo maior, mas foi só um pressentimento. 
Ainda carregava comigo alguns pesos de abandonos...
 A tua alma, a tua alma... Deus deu-te a mim e eu fugi. Nos teus braços, fugi. Nos teus braços, já longe... Posso usar as tuas palavras? Obrigada por teres escrito:


"A voz trémula, a alma amedrontada
a sombra do medo de ser humano
o frio que lhe encarnava nas veias
saudade. vazio. impotente. inerte. eterna.
ridículo é, temer algo efémero
o cigarro acaba, o tempo passa,
os dias amargos ficam, a vida desaparece
que mundo ilusório, oh tu, amor!
tudo passa,
tudo transita para a eternidade
todos os sentidos,
bem sabes que não sei amar, ser, humano
todos os silêncios,
silêncios que só o coração sabe contar"

Assim escreveste, e mais tarde isto:

"(...) Os olhos eram da cor da terra, o cabelo era da cor das trevas, o corpo era da cor da tentação, o coração era da cor da carne, o ser era da cor de Deus, o mundo era da tua cor. És o arrepio de felicidade, a calmaria da vida, a bagunça do espaço, a paranoia que me atormenta, a fraqueza de me tornar finito, foste imortal, és imortal e para sempre serás imortal, aos meus olhos. Realmente eras irreal demais, a perfeição num sonho, o pesadelo no mundo, que partiu contigo, o teu. Já sei que não voltas, mas também nunca foste, bem sabes que jamais te deixarei partir, de mim. 
Estou a escrever este texto, para complicar a tua vida. Assim, ficará decerto como a minha. Pensas que viver sem ti não é complicado? Enquanto não te esqueci. Até já, encontramos se numa dessas curvas da vida, ou numa dessas voltas que a vida dá."

- Metamorfose

Volto a dizer : As tuas palavras abraçaram-me por dentro.  
Obrigada pelo nosso tempo. Faço minhas, as tuas palavras de um dos teus primeiros poemas - 
"Pessoas como tu, cheiram a eternidade";

Estou exausta, mas hoje não estou morta
prometo: vou ser quem sou, viver o que digo
Estou exausta, mas escrevo,
afinal, escreveste-me
E as palavras são tudo
As tuas são mãos, abraços que percorrem distâncias
Toda a distância

Mais sábio, decerto mais forte que eu
Poeta até aos ossos
Grandeza humana,
Prova cósmica de vida,
És universo, és da raça dos que vivem até morrer
E enxotam abismos mortos de tempos idos. - MF

"Sabes bem que não sei viver."
- irei saber, prometo.

MF




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