sexta-feira, 1 de maio de 2015

É noite. E os becos sem ninguém.





29 de Abril


   É noite. Os becos sem ninguém. O letreiro vermelho de um hotel, vultos isolados em algumas esquinas, baços das luzes noturnas. Nada disto parece real. A estas horas nada parece real. Sinto-me flutuar numa alucinação. De noite é outro mundo - “Limpezas espirituais e exorcismos” é o serviço publicitado na rádio do autocarro com uma música barata de fundo. O motorista bate o pé, ao som de uma música pimba.

Foi um dia longo…
   Na solidão da tarde senti desvanecer-me em mim sob o céu cortado pelos ramos de árvores imemoriais. Vou dedicar-me a descrever o meu fantasma. A escrever sinto que estou realmente aqui, ainda que somente uma sombra, pedaço apagado com lampejos frios de poesia. Ainda aqui. Mesmo que não esteja. Engrandece-se um silêncio lento neste templo que me fiz. Não ouço as vagas quebrar, impelidas pela dinâmica de um mar sem origem. Passeio o corpo ausente - paz embebida de melancolia.

Um dia vamos saber - Inumámos a vida e éramos jovens. A pólvora morreu, mas ainda fingimos respirar, assim, lentamente.
   
  Talvez apenas se te visse tremesse a partir de dentro e fosse de novo abalada pelas ondas refratadas. E o sangue correria, por momentos. A urgente certeza de que ainda sou humana. Não te quero. Somente essa certeza, apenas um arrepio hiperbólico, o desmanchar das estruturas féretras, o estalar súbito da argila lisa, sem relevo ou fissuras.

Vem. Tenho a boca seca de não falar.
É desumano querer estar só.
Como pode a pedra chorar? Como pode a navalha escrever sobre o calor?



É noite. E os becos sem ninguém…


MF

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