29 de Abril
É noite. Os becos sem
ninguém. O letreiro vermelho de um
hotel, vultos isolados em algumas esquinas, baços das luzes noturnas. Nada disto parece real. A estas horas
nada parece real. Sinto-me flutuar numa alucinação. De noite é outro mundo - “Limpezas espirituais e exorcismos” é
o serviço publicitado na rádio do autocarro com uma música barata de fundo. O
motorista bate o pé, ao som de uma música pimba.
Foi um dia longo…
Na solidão da tarde senti desvanecer-me em
mim sob o céu cortado pelos ramos de árvores imemoriais. Vou dedicar-me a
descrever o meu fantasma. A escrever sinto que estou realmente aqui, ainda que
somente uma sombra, pedaço apagado com lampejos frios de poesia. Ainda aqui.
Mesmo que não esteja. Engrandece-se um silêncio
lento neste templo que me fiz. Não ouço as vagas quebrar, impelidas pela
dinâmica de um mar sem origem. Passeio o corpo ausente - paz embebida de
melancolia.
Um dia vamos saber -
Inumámos a vida e éramos jovens. A pólvora morreu, mas ainda fingimos respirar,
assim, lentamente.
Talvez apenas se te visse tremesse a partir
de dentro e fosse de novo abalada pelas ondas refratadas. E o sangue correria,
por momentos. A urgente certeza de que ainda sou humana. Não te quero. Somente
essa certeza, apenas um arrepio hiperbólico, o desmanchar das estruturas
féretras, o estalar súbito da argila lisa, sem relevo ou fissuras.
Vem. Tenho a boca
seca de não falar.
É desumano
querer estar só.
Como pode a
pedra chorar? Como pode a navalha escrever sobre o calor?
É noite. E os
becos sem ninguém…
MF
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