terça-feira, 5 de maio de 2015

[Insónia, 2h05]




Quedo numa melancolia milenar onde fito o deslizar leve das estrelas nos campos noturnos e me deito inerte nas longas estepes sem um tempo que as curve ao seu labor. Estepes estendidas por milhões de distâncias e sempre a abóbada estelar. Lá fora preferem o sol, dizem, e as ruas da cidade férteis em rostos desconhecidos familiares, e fortuitos olhares e amores e histórias. Há carros e passos apressados, noites esquizofrénicas e dias sempre iguais, sempre iguais e com estranhas renovadas vontades não sei de quê, não sei pelo quê ou para quê. 

Cá dentro não há dias nem noites.
É um pedaço sem tempo e as estrelas murmuram eternidades e o momento em que as olho estou morta e esquecida da vida, ao mesmo tempo que se me enche o peito com todo este silêncio. 

Silêncio...

este planeta é império forrado a silêncio mas as vezes movem-se vozes no ar que me chamam de volta. Vozes, amigos ou fantasmas que me lembram da minha outra existência. Há muito tempo, há muitos corpos atrás. E levanto-me deste solo de ervas e farpas que se intersubstituem sem tempo que as distinga, transmudando-se mutuamente, mal me ferindo, eu que sinto numa exterioridade a mim, quase fora de mim, em razões sencientes e no forjar de possíveis vidas no ar. 

Cá dentro é plácido.
Às vezes belo, às vezes atroz, quando o cérebro tem noção das horas e as ervas se transformam em gumes que ferem resquícios de uma sensibilidade semi adormecida. Nesses momentos lembro-me da minha outra vida e levanto-me, por mim e por todos os que me chamam, levanto-me. Levanto-me e desprego os meus olhos deste céu silente que me inebria e apaga o mundo, doce canto de sereia; os pés pesam o tempo, é tão difícil sair, o rosto ainda não é rosto, é tão difícil sentir. Este céu é eterno e do outro lado tudo se desfaz, tudo aqui é parado e lá fora é caótico.
Puxam me. Para a semana há festa. "- Vem. Gostamos tanto de ti."
 "- Não sei como ainda insistem convidar-me"
 "- Porque gostamos de ti."

Deus. Tenho de sair daqui.

Sairei, com este corpo desabituado do som e do mundo. Sairei, mas por favor: galvanizem-me à saída, na fronteira mais próxima da vossa cidade. Habituei-me pois, a viver sob outras estrelas e a inventar três mil vidas no seu mural. Amo-as porque já morreram e ainda brilham e ocupam este céu. Não me choram se eu as parar de contemplar, estão mortas e nem sabem que as vejo. Apenas os humanos choram. Apenas os humanos clamam por atenção, 

então levanto-me. Abandono este altar e dou-me ao mundo.

MF




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