sexta-feira, 5 de junho de 2015

E em silêncio, perdoou o pardal...







   Era uma vez uma menina. Percorria o quintal nos dias de Primavera explorando tesouros naturais. O gato seguia-a e deitava-se de barriga para cima à sua frente, obrigando-a a parar e a mimá-lo. Um dia, encontrou um pardal que caiu do ninho, pegou nele e levou-o para casa. Roubou a casa de madeira suplente dos periquitos, perguntou aos pais o que os pássaros bebês comiam e estes disseram-lhe que apenas a mãe pardal podia alimentar as suas crias porque mastigava as larvas e insetos para lhes dar no pequeno bico. A menina enrugou o nariz mentalmente mas salvar o pardal era tudo naquele momento. Manteve o seu pequeno segredo. " -  Não contes a ninguém, vou salvar-te" - dizia a menina, "Irei arranjar as larvas, os insectos, a água, tudo". Mas a pequena criatura parecia mais fraca a cada hora que passava e a menina colocou-a na casa de madeira como se desse modo o pardal melhorasse por se achar na sua verdadeira casa. "- Não terás medo de mim porque serei eu que te alimentarei, apesar de sermos diferentes."
   A menina deu largas à sua imaginação: Procurou no seu quarto um velho coração de borracha, brinde de uma caixa de cereais de pequeno almoço, que imitava um coração real. Encheu-o de água, pegou no pequeno pássaro ferido e bombeou para o seu bico a água impulsionada pelo coração. Foi com satisfação que viu o pardal sorver ávidamente o líquido, pobre criatura... Se bem me lembro, a menina foi de novo à gaiola dos periquitos roubar-lhes mais um item - desta vez alguns grãos. Quebrou-os e misturou-os com água, até formarem uma espécie de papa. De seguida, pegou nessa papa e aproximou-a do bico, mas o pardal não comia. Porque não comia, porquê, porquê? - indagava a menina, "- Come, não vês que te quero salvar ?!" - gritava, mais com medo do que com raiva. " - Olha o que fiz, não vês? Porque te deixas morrer ?" Mas a menina só mais tarde compreenderia o que era partir as asas. O pardal nunca mais poderia voar, mesmo que sobrevivesse, e os pardais foram feitos para voar. É previsível o final desta história. É desnecessário relatar a dor da menina quando percebeu que não conseguiu salvar uma criatura tão pequena. Enterrou-o algures no quintal. Dizem que por essa altura começou a ler bastante, histórias de outros mundos, com animais que falavam e magia. Dizem que por essa altura se apaixonou pelas palavras porque as palavras diziam sentimentos até então sem nome e sempre que a menina se sentia triste, procurava uma palavra que descrevesse esse estado, porque tristeza não é apenas tristeza, desenganem-se - A tristeza é querer salvar e não poder, a tristeza é ver morrer a inocência e deixar de acreditar que o amor poderia dar-lhe de novo asas. Tristeza é não haver palavras, é não haver palavras que definam a tristeza, percebeu a menina mais tarde. Um dia, encontrou no dicionário a palavra "Impotência" - "Insuficiência", "Incapacidade", "Impossibilidade ", são alguns sinónimos. Talvez seja esta palavra que mais se aproxima daquilo que a menina sentiu. Mas essa palavra já foi utilizada milhões de vezes para diversos assuntos -  " Sinto-me impotente em resolver este problema de matemática, sinto-me impotente em relação ao teu feitio, sou sexualmente impotente... " - Mas qual a impotência de não conseguir salvar um pássaro? Qual o nome dessa impotência? A menina procurou, obsessivamente, por palavras e livros e histórias que retratassem outras meninas que abraçassem a tarefa de ser Deus e de soprarem de novo a vida a pássaros caídos. Mas cedo percebeu que nenhuma menina tinha o seu cabelo e que aqueles pássaros não eram o seu e que, por isso, não poderia partilhar a mesma palavra com elas para descrever o seu luto. " - Inventarei uma palavra " - disse a menina, " - uma palavra que atravesse o espaço e uma vez proferida, descanse para sempre sagrada, por debaixo da pedra onde o enterrei. Uma palavra que condense todos os pesos, toda a insuficiência humana, todo o episódio da inocente gloriosa tarefa de salvamento falhada..."; Uma palavra. Uma palavra...que tudo dissesse, de tão intrínsecamente sua que acordasse de novo o pássaro, onde quer que ele estivesse, e lhe desse asas. Uma palavra sagrada, arrancada das profundezas onde lágrimas navegam, inteligível apenas para dois universos que um dia se tocaram, uma palavra intraduzível, exprimível apenas uma vez, a única vez necessária, a despedida.

  Os pássaros consomem-nos. Os pássaros fazem-nos chorar. Acorda se ainda não estás morto, acorda. A menina cresceu. Tornou-se ela própria cada pardal que não salvou porque afinal não haviam palavras. Não haviam palavras...E não falamos a mesma língua. Mas humildemente, ainda espera - apenas uma palavra e por fim a Libertação. 
   Adormeceu, debaixo de uma árvore, quis adormecer como os pardais. Pegaram nela uma, duas vezes. Recusou-se a comer. Recusou-se a acordar, e dessa vez percebeu que era maior a dor de morrer nas mãos do amor, do que a dor de ver morrer o amor nas suas próprias mãos. E em silêncio, perdoou o pardal...

MF,
para Pb


Oláfur Arnaulds - improvisations
https://www.youtube.com/watch?v=JnmZdTiyE-Q







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