quinta-feira, 23 de julho de 2015





(...) vira-os eu cem vezes. Soube pela primeira vez que nunca os olhara. No entanto, vivia ali há três meses. E, claro, desde o primeiro instante, aquela paisagem deslumbrara-me, mas o que em mim lhe respondia não era mais que uma exaltação confusa. Claro, o " Eu " filosófico é mais forte que todas as paisagens. O sentimento angustiante de beleza não passa de um assenhoreamento pelo "Eu", que se fortifica, da distância infinita que dela nos separa. Mas, naquele dia, bruscamente, soube que eu próprio criava aquela paisagem, "sou eu que te vejo, e que me vejo a ver-te, e que, ao ver-me, te faço". Este verdadeiro grito interior é o grito do demiurgo quando da sua criação do mundo. Não é apenas a suspensão de um antigo mundo, mas a projecção de um novo. E nesse momento, de facto, o mundo foi recriado. Nunca eu vira semelhantes cores. Eram cem vezes mais intensas, mais matizadas, mais "vivas". Senti que acabava de adquirir o sentido das cores, que interpretava as cores, que nunca até ali vira realmente um quadro ou penetrara no universo da pintura. Mas soube igualmente que, por esse chamamento da minha consciência, por essa percepção da minha percepção, conseguira a chave desse mundo da transfiguração que não é o outro mundo misterioso, mas o verdadeiro mundo, aquele que a"natureza" nos conserva exilados.

Raymond Abellio

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