[ESCRITA (SEMI)AUTOMÁTICA]
22 de Julho
*
Sinto-te. Como se me fosses a
carne. Murmuras-me sem saber todos os segredos. Marcas-me com os teus lábios
sequiosos a linha fina do meu pescoço. Tocas-me, despertas o universo e
adormeces o mundo e o burburinho caótico das ondas internas, das marés sem
hora desgovernadas sem lua, e tapas a náusea que me contamina o sangue, o olhar,
o paladar, o tacto, a náusea que me faz abandonar o mundo em mil e uma
simulações de morte. Sê de novo a minha montanha e eu frágil cego assalto a ti
e ao teu corpo, sob ti mas acima do céu, de onde vieste e decerto foram
esculpidos esses lábios, esses olhos, esse corpo e essa arte de me tocar. Desenha-me outra vez, respira
sobre mim, canta para mim - "a seta
apaixonou-se pelo vento", e pergunta-me de novo se confiaria no mar -
morreria nele de bom grado, é tudo o que te posso dizer.
*
As cinzas permanecem frias no
altar de um sem número de montanhas. Pressionas as feridas e estas quedam de
ferir e sobre-amas o ser que ama e cai para sempre. De novo me comoves sem
saber que me fazes morrer. Sei de cor as trevas e pedaços de medo corrompido
que advêm das noites de contagem dos grãos de areia.
(...) Descanso agora, entre fiapos fúnebres e candeeiros prostrados diante o mar e diante o fogo.
Somos aquilo que não esquecemos em todos os segundos que não dormimos.
(...) Descanso agora, entre fiapos fúnebres e candeeiros prostrados diante o mar e diante o fogo.
Somos aquilo que não esquecemos em todos os segundos que não dormimos.
*
Oriundo do sonho nasce a treva
que chama o fogo à vida. Durmo no céu e acordo no mar e na terra de percevejos
e extintos pedaços de tempo. Oriento-me entre os caminhos gastos dos homens e
entendo vagamente a luz e a morte. Sei que não posso ferir a fera sem cair para
sempre no poço sem fundo. Moves-me em lutas tripartidas e despedaças a razão
que não entende a sereia do teu rasto porque o hino que me afoga é tocado em
cordas reles e podres e vulgares. A sinfonia sou eu que a ligo a ti e esta
nasceu da poesia e da minha obsessão de pintar de novo os rios, o céu, o tempo,
a morte, a alma.
Desmancha-me de uma vez, para que me ache, recomponha os
pedaços perdidos, e com ódio do teu nome, no fim nascer em paz e a tua imagem
apenas um ontem que me matou.
*
Na cidade recolhemos a ciência do
sangue e a fórmula da morte da gravidade. Ascendemos, no doce levitar com peso,
ainda na terra mas flutuando no espaço entre o esquecimento e a lucidez.
Queimas agora, a ausência de ti aqui. Semearam-te longe e trouxeste-te a mim um
dia e estávamos ambos mortos até nos beijarmos sob um fundo verde e uma fome
secreta, quase latente, de nos incendiármos antes de quebrármos o feitiço e nos
vermos.
*
Ocultas-me a arca entre jogos de
luz e sombra. Corro atrás de ti e das palavras caóticas disparadas por ti. Foges-me de novo e arrasto as pernas em nova investida. O plano é circular,
permites-me apenas entrever o teu rosto mal
iluminado pela lua que penduraste, e num segundo dissolveste-te nas trevas, e
eu fico só na floresta, baralhada como numa vertigem. Tenho medo dessa sombra
que se recusa a falar-me, quem és tu afinal?
MF
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