sexta-feira, 3 de julho de 2015




estou no meu quarto. lá fora o ar fere, apunhala-me:
 - o ecstasy das noites, os carros de choque, os risos ébrios
e a imagem deslocada de mim - Alienada
vou para casa, e viajo pela Barcelona de Záfon,
vagueio pelo cemitério
dos livros esquecidos e pelos becos de neblina,
pelas mansões que segredam tragédias e furores de outros tempos
viajo pelos caminhos de Siddhartha,
sou ascética, sou mundana, mas não encontro a verdade
em nenhum rio, nem ouço a palavra Om;
perco-me na imensidão de Zaratustra, na solidão
das suas montanhas e quase respiro e renasço solene,
até amargurar-me de novo, pelos assuntos da terra
e do coração - meu Gastby, sou tu e estou só
na fútil, mais que vazia festa da tua enorme mansão
e devaneio de novo acerca dos barcos contra a corrente
e da luz verde do outro lado da baía
e ouço Paradise Circus  -
 "love is like a sin my love/ 
 for the ones that feels it the most";
e ouço jazz com Toru Watanabe e escrevo, tal como ele,
com medo de me esquecer, maldição da Memória
que se desfaz em mil fiapos deixando somente
um nostálgico insidioso rasto, impossível de seguir
até ao imperturbável circunscrito momento
que se queria Eterno e passível de ser revisitado
incólume, milhões de vezes;
sonho com Atticus como pai e idealizo uma ode
a Radley que se fechava em casa,
erigidas histórias de terror em seu redor
da sua imagem mitificada,
quando na verdade não queria sair
para um mundo onde se matavam cotovias;
partilho do peso da Campânula de vidro
e fantasio mais uma vez no final,
acerca de um final feliz para todos aqueles
que se lançaram ao mar sem se guardarem
para um regresso, mas de súbitos dissuadidos,
arrebatados pelo bater do seu próprio coração
 - " estou viva, estou viva, estou viva";
vou mais uma vez assistir ao nascimento de Nárnia
contida na saliva da canção do grande Leão,
e sou criança de novo, batendo no fundo
do meu guarda-roupa,
rezando pela neve e azevinhos nos meus pés,
sonhando ser lá rainha para sempre
porque lá os animais falam
e há um mar coberto de nenúfares,
no Principio do Fim do mundo
e este mundo não passa de um baço simulacro
do verdadeiro mundo;
passeio com Houlden, pergunto-me com ele
para onde vão os patos do lago, no Inverno,
lamento com ele não existirem redomas de vidro
que preservem os nossos tesouros de ontem
e o facto de não poder segurar todas as crianças
que correm pelo campo de centeio,
deixando para trás a inocência;
- meu Houlden...nunca contem nada a ninguém, disseste,
se contam, sentem saudades de toda a gente"
(sinto saudades de toda a gente);
passeio por Macondo ou pela Rua do Céu 
onde a Morte narra a chuva de bombas,
e Lisbel recita no porão uma história para todos os vizinhos
abafando o ruído apocalíptico lá em cima
com as suas palavras, e eu choro no final:
 " - os seres humanos assombram-me"
e ao final da noite, sou por fim,
condenada à morte como o Estrangeiro
que se entrega, como eu, à terna indiferença do mundo.



MF





Notas: Referências ( por ordem):
A sombra do vento de Carlos Ruiz Zafon
Siddhartha de Hermann Hesse
Assim falava zaratustra de Nietszche
O Grande Gastby de Scott Fritzgerald
Paradise circus - música de Massive Attack
Toru watanabe  - protagonista de Norwegian wood, livro de Murakami
Aticcus e Randal - personagens do livro " To kill a mockingbird" de Harper Lee
A campânula de vidro - livro semi-autobiográfico de Sylvia Plath
As crónicas de Nárnia de C.S.Lewis
Houlden - protagonista de The catcher in the rye de J.D.Sallinger
Macondo - vila fictícia de " Cem anos de solidão" de Gabriel Garcia Marquez
Rua do céu - rua fictícia de " A rapariga que roubava livros" de Markus Zusak
O estrangeiro de Albert Camus

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