sexta-feira, 31 de julho de 2015




[Reflexões sobre a Escrita automática]




Sou dupla e quem escreve é a sombra da razão
que a razão quer despir e escrutinar, 
mas a sombra verte palavras ambíguas
e brota o céu e o inferno em metáforas desligadas e fragmentadas.


1) O poema em corrente, escrito inconscientemente num frémito, num súbito premente ímpeto momentâneo, é o emergir de uma fracção mais ou menos imaculada do domínio do inconsciente, domínio este quase inescrutável à razão pelo que o conceito de "significado real" é sem sentido. O poema ou texto é sim " sentido" em imagens que surgem com versos e palavras que se destacam, pontilhados néon em estepes de trigo da psicanálise, excertos fragmentados à superfície mas coesos num fundo imagético, contidos numa ou várias metáforas de cenas misturadas. No entanto, é de presumir que durante o processo de escrita automática transbordem e colidam milhares de conceitos, memórias, e assomem assim palavras aleatórias, que perfazem um ruído de fundo  que serve de fundo a versos com significado inconsciente.

2) Há a possibilidade de uma pseudo-interpretação para o leitor - a razão poderá impor imagens intuindo certos versos, pensando metáforas comparando com modelos pré-definidos e baseada naquilo que conhece acerca do sujeito poético a partir de pequenos rastos do seu mundo inconsciente, rastos estes materializados em determinadas neuroses, obsessões, passados mal atados e desejos reprimidos.  O poema de outrem é sujeito a uma análise extremamente subjectiva quer racional quer inconsciente e na verdade o quadro final é mais reflexo do próprio mundo interior do leitor do que do autor, o que impossibilita uma interpretação aproximada do alvo real, mas assim é com toda a arte - "é o espectador, e não a vida, que a arte realmente reflecte " - (Wilde). A escrita automática produz textos de inesgotáveis sentidos e tramas porque tão ambígua. Muitas vezes é difícil explicar o "sentido" de determinada passagem para o próprio autor em termos " racionais" , no entanto, possuímos o nosso próprio inconsciente, pressentimo-lo vagamente e sabemos que imagens nos surgiram na confusão da insónia que despoletou essa escrita como se de um exorcismo se tratasse. Seremos o nosso melhor psicanalista. 


3) Esta ideia é bastante difundida - Há um limiar entre a inconsciência e a consciência (ou razão) e é nessa brecha que pode acontecer o génio, no subtil toque equilibrado desses dois universos - O ideal desta escrita pressupõe como produto final a mensagem (teoricamente) incorruptível do inconsciente, o melhor dos dois mundos juntos numa linguagem claramente esquiva, estranhamente inteligível.  No entanto, pode acontecer que a balança tenda demasiado ou para a razão ou para o inconsciente. No primeiro caso, a razão pode contaminar a mensagem original, pesando cada palavra, refreando as mãos de escreverem livremente, com pavor do caos gramatical e demónios ou desejos desnudados. Assim a razão tende a moldar o texto, eliminando o "ruído", o aparentemente sem sentido, ao sabor da sua rectidão, caprichos estéticos, moral,etc; "Lost in translation" - esta expressão sintetiza bem esta ideia de interpretação racional da escrita automática - perde-se o essencial na tradução, na transmutação do conteúdo bruto inconsciente em explicações racionais. O resultado final será obviamente pouco autêntico, será mutante, um híbrido disforme. No segundo caso, a inconsciência por si mesma poderá derivar num caos de palavras imenso, sem nexo gramatical, como comentado no primeiro ponto, e, deste modo, o ruído não passa de ruído impossível de decifrar mais tarde racionalmente. ( ou então o inconsciente "puro" sublima todos os meios conscientes de interpretação e é na verdade uma espécie de experiência fenomenológica em que as palavra são inúteis, incapazes de serem voz, de "explicar" o que está escrito, e apenas se pressentem imagens e sentimentos de forma exponencial e total e não apenas parcial, como é natural nesta escrita).

4)   Durante a escrita: 
- a respeito da adulteração em tempo real dos versos devido à extrema vigilância da razão, acredito que esta perda é mínima quando a escrita é espontânea, tempestiva, no limiar da inconsciência/consciência que se auto-fertilizam mutuamente culminando num edifício final de aparente caos insondável à razão - caos é a condição indissociável da autenticidade da escrita automática e a que permite ler sentindo ligeiramente o esvoaçar do véu, vislumbrar o fundo do icebergue.

MF






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