anamnesis
21 de Novembro
– diário
Fim do dia:
Por vezes é melhor pensar depois de um banho.
O cansaço do corpo deturpa a mente e os seus juízos são tirânicos. Acusei-me de
uma fragilidade que é sinónimo de fraqueza. Dividi o mundo em fortes e fracos e
coloquei-me do lado de uma criatura despojada, que desistiu, a um canto. Tal a
gravidade do peso afetivo, que a liga a casa, ao amor, o mais etéreo e o mais
carnal. Porque é o meu corpo que sinto acima de tudo. Como ferido, assolado, ao
nível mais animal. Sim, como um animal de carga despido da humanidade ou do
falso divino com que me cubro em ilusão? Porque não me sinto capaz de ir
sozinha para longe, sabendo que o amor esperará sempre por mim no regresso?
Porque insisto em adensar a tristeza, o pânico, chamando fraqueza à minha maior
força - a sensibilidade, a empatia, a vontade que tenho de tocar, sentir perto,
o calor de quem amo. Não pretendo que isto seja subterfúgio, sublimação.
Pretendo que seja um lembrete de como a privação dos teus sentidos,
espirituais, emocionais, físicos, tem um poder imenso sobre os teus juízos,
percepções. Tornam te uma fuga urgente ao compromisso e sacrifício. Prendem te
à dor do aqui e agora esquecendo te que tudo vai. Depois de um banho, sono,
visão de alegria, as coisas mais simples. A voz do outro lado, do teu namorado,
mãe ou irmão ou amigo. A tua cadela extasiada pelo teu regresso. Faz te sorrir.
Faz o estranho fundo dissolver se em clareza, paz, sem imagens ou intuições
obscuras, que comprimem o que chamas de coração. Nunca soubeste, dás-lhe nome
agora. Esse sentimento de achares que as tuas lágrimas são mais profundas que
as outras lágrimas humanas nas mesmas circunstâncias. Irracional, egocêntrico,
sabes. Mas não deixaste de sentir que não aguentarias sentir aquilo por mais
tempo, sem capitulação. O sentimento de seres uma criança, um tropeço profundo,
um desequilíbrio patológico que não te deixa ver o teu próprio centro
apaziguador, primitivo, de força. Estiveste contigo desde sempre e esqueces que
aprendeste a andar por ti e andaste toda a vida, na maioria dos segundos de
cada dia, em união contigo. Transferiste, por erro condicionado pela
vulnerabilidade de uma experiência, o teu Deus, o teu berço, para um humano.
Que não suportas longe. Porque tudo se anula? Se tens tanto amor e beleza em
volta....
Manhã:
A sensação
primária - a de uma indiferença absoluta pelo parecer final. Em modo automático
concorro, mais uma vez. Sem sentimento, sem nervosismo, porque sem paixão.
Porque nada disto me importa e sou inocente, a parte maior de mim é inocente e
diz que o amor é a única coisa que importa. E o amor é a mesma coisa que dói
quando longe. Portanto, queria estar perto e sentir-me realizada. Aguentar os
dias maus com o amor ao fim do dia. E não aguentar dias maus com o amor longe.
Há muita revolta irracional em mim. Na visão destes sacrifícios, destas covas
que ironicamente escolho cavar. Como se não me conhecesse depois de tudo... A
impaciência governa-me agora imiscuída com uma fria ausência. Os rostos e
passos apressados (ainda é noite,) à saída do cais, do metro. Milhões de vidas em corrida cada dia, antes mesmo
do dia clarear... (Chegarão a casa também de noite?) Qual o conceito de vida
para estas vidas? - (não o sei mas) transtorna o meu conceito de vida
(abstrato, afetivo) e compreendo os que se esgotaram. A mim, que em estado
micro já sinto o tempo tão acelerado, os meses voam, por um punhado de notas na
conta ao fim do mês. Sou da vida, sou dionísica, e adormeço a pulsão, adormeço
a criança como soldado bem formado, rígido, com os sonhos na sacola enterrada
bem longe, bem fundo, sem memória. Apenas uma vaga tristeza te recorda da perda
de algo talvez pequeno, mas imensamente importante. Não sei dizer, mas sinto
quando o amor me chega e amo, olhos nos olhos, num abraço apertado.
Acusas-me friamente de negativismo. E eu acuso-te
infantilmente de conformismo. Como se o amor e o tempo fossem leis sagradas,
que não pudessem ser transtornados pelos ritmos que criámos para o mundo. O
amor é tempo. O amor morre sem tempo, ou melhor, morre aquilo que ama em nós,
morremos. E continuamos a correr sem expressão viva no rosto, como autómatos.
Na visão da cidade cinzenta, das pessoas a
correr, eu sinto a anti-vida, o medo de tornar me assim. Esquecer o amor no
processo de calcificação afetiva. Sim, tornar-me tão fria para não doer até
doer permanentemente sem possibilidade de esperança no amor. Na graça.
Não sei qual o meu lugar no mundo. Ainda quero sentir-me perseguir alguma coisa. Nervosismo no corpo, assinalará a importância. A calma mente, porque é indiferença, gesto automático. Como da última vez. Dói-me a antecipação da solidão mais funda.
(Porque peço tanto um berço?)
A insuflação de vida é paliativo do mundo.
17 de Novembro
Poderia
estar no topo de uma revelação ou no fundo de um poço?
Pretenderei sempre entender estas novas modalidades da tristeza
Solidão?
Como se apenas tu me bastasses e fora de ti fosse vazio
Como se procurasse algo que me curasse desta ingratidão de insuficiência
A plenitude outra vez, no dia a dia.
24 de Novembro
No mesmo lugar outra vez.
Digo que aprendi. Mas foi proscrito.
E
temos saudade. Do desconhecido. Temos saudade da interrupção dos dias. Do
crepitar, do anseio, da saudade, a morte é para os gregos. Diziam. Cruzamo-nos.
Sem nos vermos.
Pensava sinais, pedia
sinais. Para voltar a casa. Porque não me basta? Vivemos a mil à hora e o amor
depura lentamente. Eu vejo-nos como todos os outros – meras formas do que
foram. Não tenho medo de ir embora, como se nada me prendesse. E digo (cobardemente) que é uma
vantagem para o sacrifício que enfrento, o sacrifício possível de estar só, bem
longe. Unicamente comigo. Sem o calor mais humano, onde adormecia toda a inquietação
e cansaço.
Porque coragem é ir com todo o coração. E eu, quero ir esvaziada do que amei.
Pergunto se peco dentro
de mim. Na imaginação. Na ingratidão. Pergunto-me porque as cores de dentro se
multiplicam, transformam, transtornam. Pergunto-me o que aconteceu a todos os
ontens. A toda a impulsão que me movia para ti. Ainda espero o acordar, o despertar,
que acompanhe o meu sonho de permanência ideal.
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